“DOWN HOUSE, 1858” OU O MORDOMO DE CHARLES DARWIN
- Cláudio Trasferetti
- há 2 dias
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Há muitos mordomos em obras de ficção. São personagens interessantes em romances policiais, como os de Agatha Christie ou Conan Doyle, porque têm acesso à intimidade das mansões e acabam sendo observadores privilegiados dos passos de seus patrões. Também podem ser úteis quando o assunto é classe social já que chefiam empregados domésticos subalternos e podem ser o profissional paradoxal que sobe e desce as escadas das estanques classes sociais inglesas, sem deixar de pertencer à classe trabalhadora, apesar de linguajares rebuscados e poses refinadas. (Talvez não seja exagero cogitar uma analogia, do ponto de vista literário, entre um mordomo e um feitor dos tempos da escravidão no Brasil, essa figura que faz a ponte entre a casa-grande e a senzala.)
O primeiro mordomo da ficção que me vem à mente é Stevens, o narrador de Vestígios do Dia, o terceiro livro de Kazuo Ishiguro e seu primeiro que explora temas não-nipônicos. Aliás, muita gente se surpreendeu ao ver Ishiguro mergulhar numa ambientação tão inglesa após escrever livros como Uma Pálida Visão das Colinas e Um artista do mundo flutuante, ambos tão arraigados ao Japão.
Stevens é um mordomo que, buscando a excelência em sua profissão, negligenciou outros aspectos de sua vida e deixou passar em brancas nuvens a possibilidade de viver um grande amor. Além disso, sua revoltante cegueira em relação ao patrão não o deixou perceber que foi uma espécie de cúmplice involuntário da participação britânica na consolidação do nazismo.
Mas por que, ao escrever sobre “Down House, 1858”, me alongo falando do Stevens de Ishiguro? O motivo número 1 é que também me surpreendi com a versatilidade de Lucio Carvalho, que escreveu dois romances tão diversos quanto “Down House, 1858” e “La Minuana”. O primeiro, cujo subtítulo é “o memorial de Charles Waring Darwin”, reconta ficcionalmente a breve vida de um ano e meio do décimo filho de Charles Darwin e sua esposa (e prima-irmã) Emma Wedgwood. O cenário é Down House, a moradia da família Darwin em Downe, localidade da Grande Londres. “La minuana” trata de um grupo de índios minuanos em processo de assimilação à vida imposta pela colonização ibérica, um tema caro a quem se interessa pela história gaúcha. O motivo número 2 é que, assim como Stevens, o narrador de “Down House, 1858” também é um mordomo cioso de suas funções.

Nessa recriação, Lucio Carvalho dá voz a Parslow, mordomo que serviu Darwin durante muitos anos, e há indícios de que tenham sido muito próximos e mutuamente respeitosos (talvez a palavra amizade seja inexata para descrever uma relação como a deles).
Charles Waring, o Charlie, era um bebê incomum e várias de suas características chamaram a atenção de seu pai, observador minucioso que a essa altura já tinha tido a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento de seus outros filhos. Darwin chegou a publicar, anos mais tarde, um trabalho pioneiro sobre o desenvolvimento infantil. À época, havia uma compreensão muito precária sobre a etiologia das síndromes que acometem seres humanos e não foi possível diagnosticar Charlie. Hoje em dia, contudo, um conjunto de indícios (descrição das características do bebê escrita por Darwin, a observação do fenótipo de Charlie em fotografia em que aparece nos braços da mãe, a idade de Emma ao dar à luz) permite que seja considerada a hipótese de que Charlie tenha sido portador de uma síndrome descrita quase uma década após seu nascimento pelo médico inglês John Langdon Down: a síndrome de Down. Imagine como deve ter sido angustiante para o autor de “A Origem das Espécies” a incapacidade de discernir o que se passava com esse seu filho, cujo desenvolvimento desviava tanto do de outras crianças.
Há um pequeno trecho escrito por Darwin que, de certa forma, diz muito sobre o livro: “Ele (Charlie) era muito carinhoso e tinha uma paixão por Parslow, e era muito bonito ver sua extrema ansiedade em estender os braços para chegar até ele”. O Parslow de Lucio tem pretensões de ser uma espécie de anjo-da-guarda da família Darwin, especialmente do patriarca, cuja importância para a humanidade ele já desconfia, e do pequeno Charlie, apesar de (ou justamente por) todas as interrogações que circundam sua saúde. É um narrador cuidadoso que, por meio de suas observações, nos conecta a assuntos tão variados quanto a teoria da evolução, a história da medicina, o embate entre ciência e religião e, principalmente, a complexidade de ter entre seus entes queridos, um filho, por exemplo, alguém com características peculiares decorrentes de questões físicas ou mentais. Considerando tudo isso, me parece que Parslow é um mordomo literário inovador já que não está a serviço do desenlace de um crime ou de discussões mais ou menos aprofundadas sobre luta de classes.

Resenha por Cláudio Trasferetti
Originalmente publicada no Facebook do autor em 19 de fevereiro de 2025.
Dados do livro resenhado:

Título: Down House, 1858: o memorial de Charles Waring Darwin
Autor: Lucio Carvalho
Editora: Dialogar
Selo: Ficção (Romance)
Número de páginas: 184
ISBN 9786584842144
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