Vivemos um tempo estranho para a cidadania. Direitos que pareciam conquistados em definitivo a partir do processo de redemocratização do país e da Constituição de 1988 em algum momento passaram a ser objeto de relativizações e ameaças. Nas últimas décadas, buscando um ajuste de contas com o passado e nossas mazelas sociais, pode ter parecido que atravessaríamos um percurso ascendente rumo à redução das desigualdades sociais e regionais, à superação de preconceitos de toda ordem e à plena efetivação de direitos fundamentais. O século XXI, todavia, foi nos mostrando que seria necessário retomar discursos que pareciam banais, pressupostos, noções já sedimentadas, diante do perigo de retrocessos na cidadania brasileira e no exercício de direitos.
Faço essa pequena introdução consciente de que deixo o texto algo pesado de saída, mas o faço para dizer que romances como Torto Arado, do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior, são mais que bem-vindos, porque dialogam intensamente com o tempo presente e com as nossas perturbadoras circunstâncias sociais, que insistem em se perpetuar.
A narrativa do livro lançado em 2019 não se desenrola na atualidade, e sim em um passado não bem identificado, talvez entre as décadas de 50 e 70 do século XX. E a história não se passa em uma periferia urbana do país, mas na região rural do sertão baiano. Por que, então, ela teria algo atual a nos dizer?
Em Torto Arado, as irmãs Bibiana e Belonísia nos emprestam seus olhos para que vejamos de perto a sua vida e a dos trabalhadores rurais na Fazenda Água Negra. A linguagem da prosa é lírica e límpida, nos transportando vividamente para aquela realidade. Vemos as cores, ouvimos as vozes, sentimos cheiros e texturas, suamos com o sol abrasador e nos afligimos.
Os trabalhadores vivem em condição análoga à escravidão, em rotina extenuante de trabalho na fazenda em troca de moradia. Cultivam as terras do senhor e podem manter um pequeno cultivo ao redor de sua casa, mas estas devem ser feitas de barro, para que desmoronem com facilidade, sem deixar vestígios. Construções de tijolos são proibidas, como qualquer coisa que dê à moradia (e às pessoas) um indesejado caráter de permanência.
Nas primeiras páginas do livro, um acidente envolvendo as duas irmãs quando crianças as unirá profundamente, tornando-as interdependentes e marcando o seu crescimento. Cada uma a seu modo e contra o contexto adverso, elas lançarão um olhar crítico ao que as cerca e se tornarão mulheres fortes, capazes de decisões corajosas.
Torto Arado nos conta da precariedade da vida daquelas pessoas. De uma precariedade intencional e, por isso, persistente, mantida com zelo. Como vencer as amarras de uma condição ultrajante da dignidade?
Os séculos passaram e a condição de vida e de trabalho análoga à escravidão não desapareceu do nosso horizonte. Tampouco vencemos a imensa desigualdade que nos caracteriza como sociedade, ao contrário, a aprofundamos. Preconceitos raciais, de classe, de gênero não só seguem presentes como parecem ter se amplificado, no discurso daqueles que se sentem legitimados e estimulados a discriminar, ofender, agredir. A corrupção de atores públicos e privados engole recursos, gera pobreza e atenta contra a democracia. São mazelas que nos acompanham desde os tempos remotos do Brasil-colônia (como mostra outro livro importante, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, de Lilia Schwarcz, que será comentado aqui em outro post), mas que parecem ter se intensificado nos últimos anos.
A literatura brasileira contemporânea, por sua vez, se enriquece quando é capaz de dialogar com as grandes questões do nosso tempo e país. Quando abandona um pouco o entorno do próprio umbigo e desvela as múltiplas realidades sociais que nos constituem, de norte a sul. Torto Arado une ótima literatura com um interesse que vai além do nosso microcosmo mais ou menos protegido. Ela nos chama em causa, contribuindo com a reflexão coletiva a que deveríamos nos propor. Reflexão que pode ter um sem número de formulações, e uma delas me parece ser: “O que estamos fazendo? É isto que somos? É isto que seremos? Podemos - queremos - ser diferentes?”.
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